Na liberdade interior fomentada pelo ‘amor paciente’, ‘amor bondoso’, pelo ‘amor que se alegra com a verdade’ que ‘tudo sofre’, ‘tudo crê’, ‘tudo espera’, ‘tudo suporta’, quis a infinita misericórdia qualificar sua relação com seus filhos, relação com Deus Uno e Trino, do Criador e suas criaturas. Tal qualificação se dá pela vocação, pois a vocação não é só uma parte do eu, não é um simples momento que se passa em minha vida, mas pode-se afirmar que somos convidados a fazer de toda a nossa vida, “vocação”, e entender que “a razão mais elevada da dignidade do homem consiste na sua vocação para a comunhão com Deus” como afirma o documento conciliar Gaudium et spes. Essa é a base que dar ao homem a capacidade do diálogo com o Criador. Ao assumirmos o chamado sonhado por Deus, consoante as nossas próprias características, como Ele fez na vida de São Paulo, é capaz de dar sentido a nossa vida e a nossa história pois nos amou por primeiro.
Jesus Cristo entra na vida de São Paulo e transforma-o, passando de cumpridor dos zelos da tradição judaica a um dos maiores missionários do Cristianismo. Já no martírio de Santo Estevão, a vida de Paulo foi marcada pelo testemunho de santidade e denodo evangélico. Com efeito, Aquele que sonda os corações e conhece os pensamentos, transforma, de perseguidor que respirava ameaças de morte contra os seus discípulos, em um “Apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus” (Cl. 1,1); anunciador do Evangelho, não por suas próprias forças, mas estabelecido segundo a presciência e plenitude da graça divina, que desde o seio materno o consagrou e o chamou (Gl. 1, 15), como ele mesmo afirma na Carta aos Gálatas. Ao Apóstolo Paulo, por obra e graça de Deus, é confiada a missão de anunciar a Boa Nova aos gentios, aos pagãos, aos reis e ao povo de Israel, o qual experimenta uma completa transformação marcada por sinais, pelo anúncio do Reino, curas, prodígios, maravilhas e, também, sofrimento, incompreensão e renúncia.
O caminho a Damasco, que seria o caminho em direção à perseguição aos discípulos de Jesus, tornou-se agora um caminho de salvação, lugar de encontro e manifestação do Senhor, lugar de queda e reerguimento, lugar de envio e confirmação à missão. No entanto, baseado nos fatos que marcam a vida do Apóstolo das gentes, narrado nos Atos dos Apóstolos (At. 9, 1-19), é possível destacar a importância do seu processo vocacional a partir de uma visão literária, em quatro aspectos, que marcam seu processo de conversão e vocação. Como primeiro aspecto saliento sua experiência transcendental, que a caminho de Damasco é surpreendido pela voz que o clamava, “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9, 4); o cair por terra e a cegueira enfatiza a reação de fraqueza que suas forças humanas detêm sem a comunhão com Deus; a voz que ordena Paulo, “levante-te, entre na cidade, e ali te será dito o que deves fazer” (At. 9, 6), marca sua vida com o chamado que o encoraja a seguir um novo caminho; e por meio de Ananias, o Senhor confirma a missão de Paulo: “vai, porque este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome às nações pagãos e aos reis, e também aos israelitas” (At. 9, 15), e assim, Deus usa de Ananias como instrumento para alcançá-lo através da graça, ao ser batizado no Espírito Santo.
Deus chama ao serviço do seu Reino, homens que através de suas vidas correspondam e testemunhem os valores do Evangelho, que em algum momento de sua vida nas diversas realidades faz com que experimentem da experiência transcendental, pois desde o seu nascimento o homem é destinado à relação com seu Criador, e essa voz ressoa no caminhar, na vivência com a comunidade, nas relações fraternas, nas relações com a própria família, e até mesmo nas próprias características, pois uma vez que somos imagem e semelhança Daquele que nos criou, portamos sinais de transcendência. Assim, o Senhor se manifesta a Paulo, há uma voz que ecoa em seus ouvidos, “por que me persegues?” mesmo apoiado em certezas religiosas contrarias ao verdadeiro Evangelho, as quais o fazia acreditar está na direção certa. Mas é a mesma voz que lhe mostra um novo caminho e lhe chama pelo nome e faz conhecer a sua vontade. Deus se manifesta não para condená-lo, mas para lhe mostrar a sua verdadeira vocação, e nos aponta que a vida é um dom recebido e por sua própria natureza deve-se tornar um bem doado ao seu verdadeiro fim.
Todo vocacionado tem seu chamado pessoal, logo, a experiência a qual Deus se manifesta a partir da realidade e particularidade de cada um acontece de forma pessoal e íntima, mas todo aquele que busca doar a própria vida em favor do Evangelho é incapaz de caminhar sozinho, portanto, é preciso estar em comunhão com o próprio Deus e em harmonia com a humanidade, com a comunidade e com o outro. O aspecto que enfatiza a queda e a cegueira que enfraquece as certezas de Paulo indica que a sua ideia de crença não corresponde a verdadeira missão que Deus tinha para lhe confiar. Ali seu orgulho cai por terra, e sua consciência é tocada na sua profundidade, por Cristo Ressurreto que o efetiva a uma nova visão, uma nova vocação. Os planos de Deus vão muito além das expectativas humanas, Ele nos confronta e nos surpreende, mesmo que as nossas limitações não correspondam a seu chamado, Ele nos faz cair e se tornar cegos para as adversidades que nos torna distantes da nossa verdadeira vocação, assim como aconteceu com Paulo, mas é necessário estar aberto a docilidade, a ação e força do Espírito Santo.
A vocação é um dom agraciado de forma livre por Deus, e aos seus eleitos Ele manifesta a sua Graça, ainda que a conduta aparentemente seja contraria a Sua vontade, em vista disso, para a vocação do Apóstolo Paulo era necessário um tempo em preparação servindo-se até de obstáculos para se cumprir os desígnios do Espírito. Na comunhão com Deus e ao deixar-se ser conduzido pela vontade divina, o Apostolo pode corresponder ao seu chamado, conhecendo e aprofundando a sua vida no seu mais íntimo. Entretanto, de início Paulo não é aceito na comunidade cristã, pois muitos ainda o via como uma ameaça, porém, o silêncio e a solidão no deserto fizeram com que ele se tornasse o líder sonhado por Deus, o grande Apostolo que viera a se tornar (Gl. 1, 17-18). Esse é o caminho para aqueles que Deus chama ao serviço do Seu Evangelho, atentos aos apelos que ressoa no mais profundo da alma, cada vocacionado é convidado a buscar encontrar sua missão e doação através do seu próprio testemunho de vida. É Ele, O próprio Cristo, que nos encoraja a assumir nossa destinada vocação, mesmo que ainda se sirva do tempo para o amadurecimento e aperfeiçoamento em vista da Sua vontade que promove liberdade de filhos escolhidos.
Quão glorioso é o Senhor e quão agraciado foi Paulo que, por um simples toque da Graça Divina, se torna um dos maiores discípulos, um “homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef. 4, 24). Paulo abraça a Igreja de Jesus Cristo por intermédio de Ananias, o qual Deus usa como instrumento para acolhê-lo na comunidade da vivência fraterna, e através do Batismo ele renasce a uma vida nova. Para Ananias era difícil acolher aquele que os perseguia, mas Deus revela o poder de sua voz e o alcance da sua ação apostólica que até hoje contribuiu com inúmeros frutos ao projeto salvífico (At. 9,15-16). Deus também revela o sofrimento que ele iria passar por causa do Seu nome, mas por amor a Cristo estava disposto a enfrentar todos os desafios, tribulações e tormentos, pois via em seus passos os esplendores da Ressurreição, que para ele era o rumo de sua vida, o único motivo de sua glória, pois nem a vida e nem a morte o separavam do amor de Cristo.
Portanto, a vocação é um dom recebido e, por sua própria natureza, é dom partilhado, e para ser doação é necessário trilhar o caminho de comunhão e harmonia com Deus e os irmãos. Nessa perspectiva, é evidente que a vida comunitária favorece a um caminho para o serviço do Reino, o qual corresponde a qualificação e sentido para nossa vida. Todavia, a vida de São Paulo nos mostra que para fazer da nossa vida um dom, devemos acima de tudo ser “homens de Deus”, pois ele se mostra no nosso meio na verdadeira fraternidade, a qual cultiva o verdadeiro amor e faz crescer em nós o desejo de servir, ainda que as nossas escolhas humanas nos tornem incapazes de perceber e escutar a Sua voz, Ele vem, se manifesta e nos elege como anunciadores do Evangelho. Ao trilharmos o caminho, Ele revela que não estamos sozinhos, pois é o Senhor que nos acompanha e faz descobrir a Sua presença que torna a nossa vida um dom sincero de si.
Ir. Natan Dias Pimentel